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O farol de La Pietra sobre as rochas cuja coloração deram o nome a Île Rousse |
Dediquei o segundo dia da minha estadia em Calvi a conhecer Île Rousse (ou L'Île Rousse, como aparece em alguns mapas), eterna rival de Calvi na história e no turismo. Île Rousse foi estabelecida como porto em 1758 pelo próprio Pasquale Paoli, naquela época líder da Córsega independente. Seu intuito era fazer frente a Calvi, que não abdicava da sua fidelidade a Gênova. É uma das raras cidades da ilha cujo nome não provém do idioma italiano, sendo hoje um dos portos de chegada dos ferries oriundos de Nice.
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O trinighellu aguardando o embarque dos passageiros em Calvi |
A distância de 24 quilômetros é vencida por um transporte que por si só é uma atração turística: o Trem da Balagne, que acompanha a costa noroeste da Córsega e passa por diversas praias no caminho, isso sem falar na maravilhosa vista de Calvi obtida nos primeiros quilômetros, quando o trem acompanha a curva da baía (veja a foto no post anterior). O trem com somente dois vagões é apelidado carinhosamente de trinighellu - "trenzinho". Gasto pelos muitos anos de funcionamento, vagaroso e chacoalhante, já teve também o apelido de "tremedor", mas tudo isso acaba contribuindo para dar mais charme ao percurso...
Os trens ligam as duas cidades seis vezes por dia, em média a cada duas horas. A viagem até Île Rousse leva 40 minutos e o ideal é sentar do lado esquerdo, para apreciar a vista do mar. Há várias paradas possíveis no caminho, algumas em estações que nem placa de identificação têm. Uma das exceções bem no meio do trajeto é uma praia associada aos esportes náuticos, Algajola, cuja vila foi fundada pelos fenícios e é outra das cidades muradas corsas. Para saltar numa dessas estações intermediárias menores, é melhor lembrar ao cobrador, pois se corre o risco de o trem não parar. Aliás, acompanhar a atividade do cobrador era uma diversão à parte; além de perfurar os tíquetes adquiridos e vendê-los para quem não os possuísse, o cara controlava cada parada nas estações, descendo até a plataforma e depois subindo novamente, sinalizando ao condutor que podia prosseguir viagem.
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Algajola com a cidade antiga à direita, em foto tomada do trinighellu |
A "ilha ruiva" que dá nome a Île Rousse está situada junto à cidade. A árida Ilha de la Pietra possui rochas com um tom mais avermelhado devido à presença de pórfiro, material vulcânico rico em quartzo e feldspato. Ligada ao continente na época de Paoli para a construção do porto, a ilha hoje sedia um farol que se vê de imediato quando o trem se aproxima de Île Rousse. Ao avistar o farol e as pessoas chegando até ele pela trilha que serpenteava em meio aos rochedos, decidi começar minha visita por lá para apreciar a vista, que parecia ser magnífica. A estação de trem fica junto ao mar na ponta da cidade; quem escolhe conhecer o farol segue numa direção, e aqueles que desejam andar pelo centro, vão no sentido oposto.
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Ilha de la Pietra com o farol e a torre genovesa, vista das proximidades da estação ferroviária |
A caminhada de vinte minutos da estação ao farol é feita por subida suave, passando pelo istmo artificial junto ao porto e por uma torre genovesa. Estas torres foram construídas por Gênova no século XVI, quando dominava a Córsega, e foram espalhadas às dezenas por toda a sua costa. No caso de Île Rousse, nota-se como a torre se mescla no horizonte com as rochas da ilha.. A função das torres genovesas era de vigilância para impedir ataques piratas. Aliás, impressiona em toda a Córsega a quantidade de ímãs, camisetas e outras lembranças que têm a figura clássica do pirata com o tapa-olho como tema.
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O caminho até o farol, passando pelo porto e pela torre genovesa |
A subida teria sido bem fácil se não ventasse tanto. A vista obtida do farol é de fato soberba em qualquer direção, tanto para o Mar da Ligúria quanto para a cidade. Com o horizonte claro , dava para identificar até a península de Cap Corse, o dedo indicador em riste do mapa da Córsega. As montanhas estavam ainda mais belas naquele dia, com uma camada de nuvens avançando e passando a cobrir os picos, num efeito que parecia uma cascata caindo.
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O pequeno farol de La Pietra |
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Ao fundo, a costa percorrida momentos antes pelo trinighellu, vista do pátio do farol. |
Durante o verão há um jeito cômodo de chegarmos ao farol. Pode-se embarcar no petit train, o trenzinho turístico característico da Córsega que também está disponível em outras cidades que visitei, como Ajaccio, Corte e Bonifacio. No início de outubro ele estava funcionando normalmente nessas localidades, mas em Île Rousse estava encostado na praça principal. De qualquer forma eu o teria dispensado; achei a caminhada ótima e revigorante, aproveitando o ar marinho em temperatura bastante agradável.
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Île Rousse vista do farol. Repare na tonalidade ocre da rocha da ilha. |
Voltei então pela mesma rota, passando pela estação ferroviária e rumando para a Place Paoli, a principal de Île Rousse. Com 2.500 habitantes fixos, Île é um desses balneários que no verão bomba com suas praias lotadas de gente e baladas mil. Fora de temporada, tinha a tranquilidade de uma cidade do interior. O movimento pequeno estava basicamente concentrado nas transversais da Place Paoli, que, como não podia deixar de ser, tem um busto do líder da independência, reverenciado como "Pai da Pátria" pelos corsos, sempre conscientes de sua identidade.
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A Igreja na Praça Paoli com suas tamareiras |
Duas construções se destacam ao redor da praça. A Igreja da Imaculada Conceição é embelezada por tamareiras centenárias, enquanto uma surreal espécie de templo grego vazado, construído em 1844, sedia o Mercado da cidade durante as manhãs. Cheguei com as barracas já encerrando o expediente, mas pude ainda verificar a grande quantidade de frutas e produtos típicos expostos, incluindo doces. Falando em sobremesas, quem visita a ilha não pode deixar de provar o canistrelli ,o calórico e gostoso biscoito seco corso constituído de farinha de castanha, azeite de oliva (castanha e azeitona são abundantes na ilha), açúcar, ovos, vinho branco e anis.
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O Mercado de Île Rousse |
Faminto pela esforço da caminhada até o farol, e como já estava na hora do almoço, fui direto ao restaurante U Spuntinu, na rue Napoléon praticamente ao lado do mercado. O restaurante estava indicado como tendo uma das melhores omeletes de brocciu da Córsega. Como vocês se lembram do último post, não pude tirar uma conclusão concreta ao provar o ravioli no dia anterior em Calvi. Pedi então a omelete de brocciu com menta, uma combinação que é favorita entre os corsos, sendo um dos seus pratos típicos principais. Grande admirador de omeletes, me decepcionei com a refeição. Os corsos que me perdoem, mas achei o gosto enjoativo e para mim o queijo brocciu definitivamente não combina com ovo e menta, parecendo bastante uma omelete de ricota. A decepção foi tanta que esta foi a minha experiência derradeira com o brocciu durante os oito dias que passei na Córsega.
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A omelete de brocciu e menta do U Spuntinu |
Quando me despedi de Île Rousse no meio da tarde, o mar já tinha se tornado bastante revolto, um prenúncio da chuva anunciada para o dia seguinte. Para o terceiro e último dia da estadia em Calvi, eu tinha planejado conhecer uma das maiores atrações naturais da Córsega, navegando por barco até a Reserva Natural de Scandola. É um conjunto belíssimo de falésias (calanques em francês) de granito vermelho na costa oeste da ilha, que é Patrimônio Natural da Humanidade desde 1983. Com a chuva forte não houve saída do passeio, e qualquer atividade pelas redondezas também ficou inviabilizada. O pior ocorreria no dia seguinte, o da saída de Calvi, quando eu enfrentaria uma sucessão de acontecimentos bizarros. Mas este é assunto para o próximo post.
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A praia de Île Rousse, com a torre genovesa e o porto ao fundo |
* Este é o terceiro post da série sobre a Córsega. Para visualizar os demais, acesse Córsega, a bela ilha no Mediterrâneo.
Postado por Marcelo Schor em 17.12.2015
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