Corte, a capital da Córsega independente
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Corte, a capital da Córsega independente


O Ninho da Águia na fortaleza de Calvi, visto do Belvedere

           Estava bem curioso para conhecer Corte, também grafada como Corté em francês. Única cidade do interior da ilha a possuir uma cidadela murada, é conhecida "como a mais corsa das cidades". Tal lema tem sua razão de ser. Lá foi proclamada a independência da ilha (que durou apenas quatorze anos) e promulgada sua Constituição, tornando-se Corte a capital da nova República. Foi adotada ainda em Corte nessa época a famosa bandeira da Córsega, com a cabeça de mouro usando bandana, cuja figura hoje é replicada por todo canto da ilha como um símbolo do nacionalismo corso. Corte sedia também a única universidade da Córsega, reinaugurada há 34 anos, e hoje abriga o seu museu mais importante. Passear pelas suas ruas, praças e cidadela é absorver toda essa história desconhecida por nós, além de apreciar o cenário majestoso de rios e montanhas altas que cercam a cidade.

A bandeira da Córsega

       Passei por um dilema para inserir Corte no meu roteiro pela Córsega. A cidade é uma das paradas do trem que liga Calvi a Ajaccio, portanto era plenamente possível dividir o trajeto em dois, pernoitando em Corte. Porém notei que a estação ficava no vale, um pouco longe das atrações turísticas da cidade alta, e com mala, somente pegando um táxi, veículo raro por aquelas bandas. Além do mais, para minha surpresa, os poucos hotéis urbanos já não tinham vaga no fim de semana. Outra opção, parar em Corte e seguir para Ajaccio horas mais tarde, se mostrou inviável, pois as acanhadas estações ferroviárias corsas não possuem bagageiros onde se possa deixar as malas. Acabei optando por ir direto a Ajaccio e voltar no dia seguinte, um sábado, por ônibus numa viagem de hora e meia. Escolhido o plano, tive que alterá-lo novamente, pois alguns dias antes de embarcar constatei que tinham acabado com a linha de ônibus e a única ligação era mesmo o trem, em viagem de duas horas. 

Vista da cidade desde a ponte sobre os rios, cercada pela serra alta

         Com a inundação ocorrida na sexta-feira (a epopeia foi narrada no penúltimo post) e a viagem a Ajaccio efetivamente feita no dia seguinte, fui obrigado a deixar o passeio a Corte para o domingo. Essa troca bagunçou de novo o meu planejamento: enquanto que de segunda a sábado há alguns horários da volta de Corte para Ajaccio distribuídos ao longo da tarde, no domingo só há um trem, no final da tarde. Desta forma fui obrigado a permanecer quase sete horas em Corte. Para quem não vai seguir as inúmeras trilhas de caminhada nos vales fluviais, quatro horas na cidade é mais do que suficiente para conhecê-la bem, e essas três horas adicionais que fui obrigado a passar lá me fizeram falta em Ajaccio.

          Apesar de já ter feito o trajeto no dia anterior, o percurso de duas horas de trem entre Ajaccio e Corte não entediou, devido às paisagens lindas de montanha. Quem senta nos bancos da frente da composição, como foi o meu caso, ainda usufrui da visão do para-brisa fronteiro, pois a cabine do piloto é bem vazada. As duas horas previstas de trajeto acabaram ficando um pouco espichadas devido a um fato inusitado: durante alguns quilômetros na subida da serra um cachorrinho branco resolveu correr na bitola estreita do trilho à frente do trem, obrigando o piloto a reduzir bastante a velocidade. Impressionou a resistência do bichinho, que correu durante vários minutos na nossa frente, sem perder o fôlego. Só fiquei sem saber se o intuito dele era apostar corrida, se estava fugindo ou se não estava nem aí para o trem. Agora imaginem o que teria ocorrido com ele no Brasil numa situação dessas... 

Corte e parte da muralha da fortaleza da cidadela vistas do Belvedere
   
          Assim que se põe os pés na estação ferroviária, já se avista o castelo da cidadela no topo do rochedo, símbolo maior de Corte. Optei por utilizar um atalho para pedestres para chegar mais rápido à cidade alta. O caminho passa por uma ponte sobre a confluência dos rios Restonica e Tavignano, famosos na Europa pelas trilhas belíssimas que percorrem seus vales, com ponto de partida em Corte. Após a ponte, uma escadaria conduz à praça principal da cidade alta, a Place Paoli.  Quem quiser evitar os degraus deve seguir para a cidade pelo caminho tradicional de veículos, mais longo. Da Place Paoli, mais escadas galgam a cidade alta até alcançarmos a entrada da Cidadela.

         Antes de entrar na atração principal de Corte, subi uma ruela que acompanha a muralha da fortaleza para alcançar o Belvedere, um mirante de onde se tem a melhor vista do castelo no topo do  morro, além de vistas do vale do rio Tavignano e da própria Corte abaixo. Depois de alguns minutos apreciando a beleza daquele monumento sobre o penhasco, apropriadamente chamado de Ninho da Águia, voltei e entrei na Cidadela pelo seu portão.

O Portão da Cidadela

         O castelo da cidadela foi construído pelos aragoneses em 1419. Mais de três séculos depois  Pasquale Paoli instalou na própria cidadela a Universidade da Córsega, mas quando a França anexou a ilha após derrotar as tropas de Paoli, a universidade foi extinta e a cidadela passou a ter uso exclusivo militar, já que era praticamente inexpugnável. Foi sede da Legião Estrangeira, como também ocorreu com a cidadela de Calvi, e acabou virando prisão durante a Segunda Guerra Mundial. Aliás, impressiona a diferença existente entre cada uma das quatro cidadelas que conheci na Córsega. Enquanto em Calvi a maior parte da cidadela é constituída de residências, a de Corte é composta por dois grandes edifícios, construídos no século XIX, além do castelo no topo, hoje somente um monumento histórico.

O pátio de entrada da Cidadela, com o petit train e o prédio do escritório de turismo, em foto tirada a partir do museu

          Assim que ultrapassamos o portão austero, chegamos a um pátio que separa os dois prédios, que realmente têm uma aparência militar. Um deles sedia hoje o Museu da Córsega, enquanto o outro abriga um instituto de arte e o escritório de turismo da cidade, fechado durante a minha visita. Achei esquisita a localização do escritório, dentro de um prédio histórico no alto do morro e não na praça principal, como costuma acontecer. Quando estava entrando no museu, o que pára no pátio despejando alguns turistas? O petit train da cidade, que ao contrário do trenzinho de Île Rousse, estava funcionando em outubro. Uma boa alternativa para quem quer evitar as escadarias das ruas e de quebra pode ouvir o condutor relatar fatos curiosos sobre Corte.
       
Vestimentas de confrarias no Museu da Córsega

        O Museu da Córsega ("Museu di a Corsica")  é um museu interessante, mostrando em seus dois andares diversos aspectos da antropologia, cultura e geografia da Córsega. O segundo andar tem o singular nome traduzido de Museu Em Construção. As legendas das mostras são bilíngues, em francês e corso, mas nada em inglês exceto o folheto auxiliar dado na recepção. Achei curiosa a apresentação de vestimentas das chamadas confrarias, associações religiosas católicas que tiveram importância na história corsa.

Subida para o Castelo a partir do museu

            Outra coisa esquisita: para se chegar ao castelo  no topo do morro o único caminho existente sai do pátio do segundo andar do museu, ou seja, você é obrigado a pagar os €5,30 de ingresso do museu se quiser conhecer o castelo. Rumei para lá, galgando mais algumas escadas. O Ninho da Águia é pequeno, completamente vazio e seu pátio é fechado pela muralha, com algumas aberturas para se apreciar a vista, que perde da obtida do Belvedere por uma única razão - falta o objeto mais atraente, o próprio castelo. O aspecto de desolação era maior ainda por eu estar absolutamente sozinho na área, e o pior, à procura da saída, acabei dando uma de pateta andando em círculos pelos pátios e torres interligados, até perceber que para alcançar a saída  tinha que atravessar uma sala por dentro do castelo - nota zero para minha falta de atenção e para a ausência total de placa de orientação.

Pátio superior do Castelo de Corte

        Junto  à praça do portão da Cidadela, dei uma passada pela frente do Palais National, a casa da antiga administração do governo genovês, de importância grande para a história corsa - foi lá onde Pasquale Paoli declarou a independência da Córsega em 1755. O  palácio também foi sua residência e sede do governo da nova república. O local hoje abriga um centro de pesquisas da universidade.

Porta do Palais National, onde foi proclamada a  independência corsa

          Existem outras duas praças de interesse na cidade alta, que corresponde à parte histórica de Corte. A primeira e mais elevada, bem perto do portão da cidadela, é a Place Gaffory, um largo minúsculo enfeitado pela estátua de Jean-Pierre Gaffory, um dos líderes da insurreição que acabou levando anos depois à independência da Córsega. Gaffory e sua esposa lideraram a revolta contra Gênova, que teve batalhas travadas nas ruas da cidade. O prédio em frente à estátua, na época a moradia de Gaffory, serve como testemunho, pois suas paredes estão cravejadas por buracos de bala oriundos dessas batalhas. Gaffory acabou assassinado em Corte em 1753, a mando do próprio irmão, simpatizante dos genoveses, e assim não pôde ver seus ideais concretizados. Do outro lado da praça, se ergue a Igreja da Anunciação, cuja torre rosa alta e estreita se destaca na vista desde o Belvedere

A Place Gaffory e os buracos de bala centenários

        Não surpreende que a praça principal tenha o nome e a estátua do patriarca Paoli, chamado de "Pai da Pátria". Além de ter liderado em Corte a  declaração de independência contra o domínio genovês, Paoli foi o governante da República Corsa, adotando uma constituição com aspectos democráticos durante o curto período de independência e, após um período exilado, ainda costurou um domínio inglês sobre a ilha por dois anos a partir de 1794. Da Place Paoli, sai a rua principal, a Cours Paoli, que liga a cidade antiga à nova. Se você achar que a praça está mais cuidada que o resto da cidade, não é imaginação - o local sofreu uma plástica completa há poucos meses.

A Place Paoli


         Nas duas praças e na escadaria entre elas se encontram vários restaurantes. Escolhi o U San Teofalu, na Place Paoli, para apreciar uma combinação diferente - gnocchi au sanglier, nhoque com javali. As carnes de porco e javali são das mais comuns nos cardápios corsos, com o presunto e embutidos suínos tendo renome em toda a Europa. Os habitantes comentam que uma das razões da carne saborosa é o alimento dos porcos, a castanha, cuja árvore está presente em toda a Córsega. Recomendo, o prato estava bem gostoso.

         De Ajaccio segui para a cidade mais bonita da Córsega e sem dúvida uma das mais sensacionais que já visitei em termos de paisagens de cartão postal - Bonifacio, assunto dos próximos posts.        

* Este é o sexto post da série sobre a Córsega. Para visualizar os demais, acesse  Córsega, a bela ilha no Mediterrâneo.


 Postado por  Marcelo Schor em 19.01.2016 



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