Appenzell, onde a Suíça é mais tradicional

         Ao se caminhar por uma trilha que acompanha um riacho no vale, com montanhas nevadas compondo o cenário ao fundo, cruza-se com poucas pessoas. Para compensar, há vacas por todo o canto, com aquele ar plácido sobre o pasto de um verde incomum. As vacas, com seu sininho característico pendurado no pescoço, foram ordenhadas pelos fazendeiros no raiar do dia e ficarão por ali até o anoitecer, quando serão recolhidas novamente ao estábulo. O cheiro campestre toma conta de todo o ambiente, fazendo você esquecer as agruras do seu dia a dia na poluição da cidade grande. Este cenário idílico, apresentado em inúmeros filmes, é muito associado aos Alpes e à Suíça, e um dos locais onde se pode apreciá-lo ao vivo é a região de Appenzell.

           A região e a cidade de Appenzell ainda são pouco conhecidas pelos brasileiros. A área não consta da maioria dos nossos roteiros turísticos, mas reserva boas surpresas. Situada no nordeste suíço, perto da fronteira com o Principado de Liechtenstein, é formada por dois cantões pequenos de nomes complicados (Appenzell Innerrhoden e Appenzell Ausserrhoden) e com fronteiras muito recortadas, um originalmente católico e o outro protestante.

A Hauptgasse, rua principal de Appenzell

       A cidade de Appenzell fica a 1h50min de distância de trem de Zurique, bem no limite do que considero aceitável para um bate-volta (se bem que no caso da Suíça, com muitos trajetos ferroviários passando por cenários bastante bonitos, este limite pode ser esticado). É necessária uma conexão em Gossau, onde embarquei em um trem menor e mais antigo, com bitola diferente, e que certamente combina mais com o espírito da área. A partir de Gossau, a paisagem muda completamente. As cidades maiores somem do mapa, substituídas por vilas pequenas e vales profundos, pois a população do cantão não ultrapassa os 16.000 habitantes. À medida que o trem vai galgando o vale e se aproximando de Appenzell, as estações vão se tornando cada vez mais rurais, e algumas atendem a teleféricos, como é o caso de Jakobsbad, que serve ao mirante Kronenberg. Afinal, a região é composta de colinas que vão dando lugar aos primeiros contrafortes dos Alpes.

A Poststrasse, com o Appenzell Museum no fundo à esquerda da foto

        Appenzell é um lugar onde o progresso aparenta ainda não ter chegado e onde não há pressa.  Tendo se juntado à Confederação Suíça há mais de 500 anos, pode ser resumida como a área "camponesa" do país. Sua pequena população tem orgulho em preservar as tradições suíças mais antigas, que remontam a muitos séculos atrás. Às vezes este apego causa estranheza, sendo objeto frequente de troça pelos suíços residentes nas áreas mais desenvolvidas.
 
      Um exemplo dessas tradições é o Landsgemeide, forma de plebiscito existente desde 1378 que hoje sobrevive somente em dois cantões suíços, onde as questões ainda são decididas pelos eleitores ao ar livre na praça principal, com a contagem das milhares de mãos levantadas. Outro exemplo do conservadorismo local é que as mulheres só conquistaram o direito a votar nestas questões regionais em 1991, mas só depois da intervenção da Suprema Corte, já que a proposta foi derrotada pela enésima vez no plebiscito de 1990. Para admissão na votação, há uma alternativa ao título de eleitor: a apresentação da baioneta, uma espada suíça que passa de geração para geração em cada família. Imagens da assembleia, que ocorre anualmente no último domingo de abril, são um dos assuntos favoritos dos cartões postais disponíveis nas lojas de souvenir. Pena eu ter estado lá no último domingo do mês errado, maio...

         Como é comum nos cantões rurais, a economia da região é baseada na agropecuária e na produção de queijos, motivo incontestável de orgulho da população local. Uma coisa é inegável: cheiram à beça. O turismo é outra fonte de renda, já que Appenzell é uma meca para amantes de caminhada, tanto nas trilhas que varam campos e colinas quanto nos caminhos acidentados no alto das montanhas próximas, sendo as mais famosas os picos Säntis e Ebenalp. Dentre as trilhas mais conhecidas há uma inusitada: a Trilha do Pé Descalço (em alemão, Barfussweg), entre Jakobsbad e Gontenbad. Pois é, trata-se de uma caminhada de 90 minutos pelos campos, com travessia de riachos rasos, em uma trilha especialmente preparada, trajeto para ser feito sem calçados e com paradas estratégicas em fontes durante o percurso para refrescar os pés.

       Quanto à atração principal urbana, a capital Appenzell, é compacta e bem pitoresca.  Sua característica marcante são as fachadas dos enormes casarões de madeira, com janelas bem próximas entre si e enfeitadas cada uma com afrescos diferentes pintados sob elas. Algumas das edificações possuem telhados com formatos abaulados, fazendo com que se assemelhem a chapéus de camponeses. A cidade possui o Appenzell Museum, que ocupa seis andares do prédio adjunto ao escritório de turismo, na rua principal. Lá são apresentados os diversos aspectos da cultura local, incluindo vestuário e utensílios, mas com os letreiros explicativos somente em alemão.

          Devo confessar que me arrependi de fazer o bate-volta - a região é muito bonita e o ideal teria sido pernoitar em Appenzell, para aproveitar a caminhada pelas trilhas que saem da cidade e poder visitar também o monte Säntis, além do Ebenalp. De quebra, seria possível também apreciar a apresentação  gratuita da música folclórica local, que acontece em algumas noites durante a semana.

          No próximo post, o ponto alto (tanto no sentido geográfico quanto no figurado) da minha visita à região: a subida ao Ebenalp.