A bósnia Mostar e sua ponte-símbolo
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A bósnia Mostar e sua ponte-símbolo



A Ponte Velha de Mostar sobre o rio Neretva,  entre as torres Helebija e Tara

           Deixamos Dubrovnik de manhã cedo para a jornada rumo ao desconhecido (era assim que me sentia em relação à Bósnia, nosso destino, já que os guias de viagem que eu havia lido se limitavam à Croácia e à Eslovênia). Voltamos pela mesma estrada costeira cheia de curvas e paisagens da vinda até o delta do rio Neretva, onde entramos numa outra estrada rumo ao interior. Se já achei estranha a sucessão de postos de fronteira na ida, agora foi pior: primeiro Croácia-Bósnia, em seguida Bósnia-Croácia e dezenas de quilômetros mais adiante, novamente Croácia-Bósnia. Nesta última fronteira, ao contrário dos anteriores, havia uma fila de carros aguardando a vez e perdemos vários minutos na travessia, com os guardas verificando cada passaporte e fazendo uma vistoria detalhada em alguns carros.

          A Bósnia é um dos sete países originários da antiga Iugoslávia, com 3.800.000 habitantes. Este número é uma estimativa, pois desde o final da guerra  não é feito um censo, e houve emigração em massa no período, além das inúmeras mortes causadas pelo conflito. O país possui uma diferença crucial em relação aos seus vizinhos ex-iugoslavos. Enquanto Croácia, Eslovênia e Sérvia possuem uma etnia dominante, a Bósnia é um caldeirão de três etnias diferentes, cada uma com sua própria religião. Existem os croatas católicos (15% da população), os sérvios ortodoxos (37%) e os bosníacos (48%), como são chamados os bósnios que professam a religião muçulmana, herança dos 400 anos de domínio otomano a partir de 1463. Somente em 1878 o Império Austro-Húngaro tomou a região. Quanto à língua, o bósnio é muito parecido com o croata e o sérvio, tanto que até 20 anos atrás os três idiomas eram conhecidos pelo nome coletivo de servo-croata. A moeda bósnia é o marco conversível, que estava valendo 50 centavos de euro. Não precisei trocar meu dinheiro; em Mostar usei kunas para pagar o almoço e comprar lembranças, e em Sarajevo, na primeira refeição num restaurante de shopping, recebi o troco em marcos ao oferecer uma nota de 20 euros. Como tudo na Bósnia é muito mais barato que na Croácia, este troco na moeda local durou os dois dias restantes de estadia no país.

A Igreja de Santiago em Medugorje

         Após passar pela fronteira entramos na região da Herzegovina. Para quem não sabe, o nome completo do país é Bósnia e Herzegovina, sendo esta última a região mais ao sul. Fizemos uma parada em Međugorje (lê-se medjugôrie), uma vila que ficou famosa pela suposta aparição da Virgem numa montanha das cercanias a seis crianças a partir de 1981. Desde então, apesar de as aparições não terem sido reconhecidas pelo Vaticano, o número de peregrinos só aumenta e hoje Međugorje é um grande centro de peregrinação católica da Europa. O comércio de objetos religiosos prospera ao redor da Igreja de Santiago. Para quem não tem interesse religioso, a localidade não tem qualquer atrativo.

A rua de acesso à cidade antiga e à Ponte Velha

         Prosseguimos então para a grande atração do dia, Mostar. A capital da Herzegovina foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco por sua cidade antiga, um primor de arquitetura islâmica que nos remete às cidadezinhas do interior da Turquia, com os minaretes de mesquitas furando o céu. Sua principal atração é a Ponte Velha (Stari Most) sobre o rio Neretva, uma belíssima construção curvada cuja estrutura em pedra foi erguida em 1566 a mando do Sultão Suleyman, muito conhecido por quem visita Istambul por ser nome da maior mesquita da metrópole turca. A ponte surpreende pela sua elegância e simplicidade. Por sinal, o nome Mostar significa "guardiães da ponte".

Mostar e as águas verdes do Neretva vistas da varanda do restaurante

      A parte turística da cidade antiga na realidade é composta praticamente por uma rua, passando pela Ponte Velha. Almoçamos num restaurante à beira do rio, de um verde cristalino difícil de acreditar. A vista do restaurante Bella Vista é magnífica, justificando seu nome, mas a comida deixou muito a desejar - foi servido o prato típico da Bósnia, o ćevapi, constituído de pequenas caftas de carne acompanhadas de um pão árabe meio esponjoso (conhecido como somun) e cebolas picadas. O conjunto estava um tanto insosso. Enquanto aguardava a refeição na mesa da varanda, fiquei me divertindo vendo o movimento de pedestres na ponte e a abordagem dos turistas por jovens saltadores, que por alguns trocados pulam da ponte nas águas gélidas do rio, 22 metros abaixo. Pelo visto não faturam muito; durante todo o tempo em que almoçamos só um turista se dispôs a pagar pelo espetáculo. Esta é uma tradição de séculos, existente desde a construção da ponte.

A Ponte Velha e a Torre de Helebija

          Caminhar pela ponte requer cuidado devido ao seu formato curvo que a torna íngreme. Não são usados degraus, e para que as pessoas não escorreguem no piso liso inclinado, há barras atravessadas ao longo do calçamento, onde os sapatos se apoiam. Além disso, a Ponte Velha oferece vistas maravilhosas do rio e das mesquitas. Ultrapassando a ponte, a rua tem uma sucessão de lojas e barraquinhas vendendo todo o tipo de artigos típicos e artesanato islâmico, desde objetos de decoração até bolsas trabalhadas, a preços convidativos. A ala feminina comprista da excursão fez a festa... A rua acompanha o rio e no seu final se localiza a mesquita principal da cidade, Koski Mehmed Paša, de 1617. O seu domo azul me lembrou as cúpulas das igrejas ortodoxas de Santorini. 

O rio Neretva e o minarete da mesquita de Koski Mehmed Pasha, numa foto tirada do alto da ponte

        Infelizmente Mostar também foi  uma das localidades mais afetadas pela guerra civil que se seguiu à separação da Iugoslávia. Foi a cidade mais bombardeada de toda a Bósnia. Para piorar, podemos considerar que foram duas guerras distintas, uma após a outra. A primeira, em 1992 e 1993, uniu croatas e bosníacos partidários da independência recém-declarada contra o exército dos sérvios, contrários à segregação. Nesta guerra a cidade já foi bastante castigada, primeiro pelos combates em suas ruas, e depois por bombardeios pelos sérvios direto das montanhas. Após a expulsão dos sérvios, os croatas se voltaram contra os bosníacos e a cidade se dividiu ao meio, croatas no lado ocidental e muçulmanos do outro. O intuito dos croatas era manter uma república bósnia própria que mais tarde poderia se unir à Croácia. O que restava de pé no lado oriental foi destruído, com expulsões, estupros e assassinatos dos muçulmanos bosníacos.  Os croatas arrasaram até a Ponte Velha, a única que tinha resistido incólume ao cerco sérvio. Após a destruição, o acordo de Dayton foi assinado em 1995 trazendo o fim das hostilidades e a cidade foi paulatinamente sendo reconstruída nos anos seguintes. A Ponte Velha foi reinaugurada somente em 2004, refeita com recursos da Unesco e de outros fundos, praticamente idêntica à original e simbolizando o renascimento de Mostar. Entretanto, as marcas da guerra estão por toda a parte, seja nas casas ainda em ruínas que subsistem aqui e ali, seja no alto número de sepulturas nos cemitérios com o ano de 1993 estampado, e principalmente na divisão da cidade ao meio entre croatas e bosníacos, que continua até hoje.
       
Barraquinhas de lembranças tomam a rua principal da cidade antiga

        Rumamos depois para Sarajevo na estrada que serpenteia pela ravina do rio Neretva, subindo os Alpes Dináricos. Passamos por paisagens campestres e idílicas formadas pelo rio ainda mais verde e pela montanha. Uma constatação arrepiante: na Bósnia os cartazes rodoviários mostram os nomes das cidades em dois alfabetos, o romano (dos idiomas bósnio e croata) e o cirílico (do sérvio); enquanto estávamos na Herzegovina, o nome em alfabeto romano vinha primeiro, mas todos os cartazes no caminho estavam com os caracteres em cirílico completamente pichados, impedindo sua leitura.


Plantações à beira da estrada na saída de Mostar

        Nosso solícito guia em Mostar, um jovem que era bebê no final da guerra, nos falou da dificuldade da geração dos seus pais em conviver com as outras etnias após todas estas atrocidades. Segundo ele, a nova geração já consegue superar este trauma. E como a Bósnia pôde alcançar a paz após quatro anos de destruição mútua? Este é um assunto para o próximo post, quando conheceremos a capital Sarajevo e veremos como é o complicado sistema de governo do país nos dias de hoje.

Os Alpes Dináricos no caminho para Sarajevo. O cenário lembra seus homônimos suíços.

* Este é o décimo terceiro post da série sobre os países da extinta Iugoslávia. Para visualizar os demais, acesse Atravessando os Bálcãs: Croácia, Eslovênia e Bósnia  


        
Postado por  Marcelo Schor  em 19.10.2013





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