Valletta, a capital dos Cavaleiros de Malta
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Valletta, a capital dos Cavaleiros de Malta


Vista de Valletta a partir do barco que a liga a Sliema, se destacando o grande domo da Igreja Carmelita

      Valletta, a capital de Malta, foi uma das cidades que mais me causaram impacto à primeira vista. Creio que foi a razão principal de ter gostado tanto de Malta.  Ocupando uma superfície mínima (0,55 km²), a cidade barroca planejada no século XVI impressiona pelo número alto de monumentos históricos (320, segundo o site da Unesco, que a declarou com toda a propriedade Patrimônio Mundial da Humanidade). Ainda por cima, Valletta será Capital Europeia da Cultura em 2018.

Foto aérea de Valletta, com o forte St. Elmo na parte inferior - fonte: timesofmalta.com

        A cidade inteira é extremamente conservada, e realmente a sensação é que voltamos no tempo ao visualizarmos quarteirões inteiros de prédios uniformes de pedra, com verdadeiras obras arquitetônicas pipocando aqui e ali. Fica situada em localização estratégica, numa península com o Forte St. Elmo na sua ponta no Mar Mediterrâneo e ladeada por duas baías que a separam das localidades vizinhas. Valletta ainda é quase toda cercada por uma muralha. Como as terras da península são elevadas – várias ruas são ladeiras ou escadarias – as vistas obtidas dos seus jardins e mirantes são nada menos que fabulosas.

A piscina do Hotel Phoenicia, junto aos muros da cidade

        Conforme mencionei no post inicial da série, escolhi Valletta como base da minha estadia em Malta, não só por ter me parecido ser a cidade mais atraente (no que acertei completamente), como também pela facilidade de transporte a partir dela, por ônibus. O problema é a existência de poucos hotéis; escolhi o Hotel Phoenicia, um cinco estrelas junto ao muro da cidade e tecnicamente situado no município de Floriana, cuja diária estava em promoção. A localização do hotel é fantástica, a poucos passos do portão de entrada da cidade e do terminal rodoviário. Se falamos do ônibus para o aeroporto, a vantagem é maior ainda: o ponto final fica praticamente na porta do hotel. O Phoenicia, inaugurado há 67 anos, é considerado a “grande dame” dos hotéis malteses (apesar de a fachada, feia, dar sinais de decadência) e se orgulha da sua tradição; há inclusive uma foto na parede mostrando a Rainha Elizabeth II em uma recepção oferecida no hotel há alguns anos - a Rainha chegou a morar em Malta em 1949 quando ainda era princesa, acompanhando o marido, Príncipe Philip, e foi soberana de Malta por 12 anos até sua independência em 1964. O quarto em que pernoitei não tem nada de mais, mas o térreo conta com salões suntuosos e um jardim estreito e longo acompanha a muralha da cidade, desembocando na piscina, com vista para a baía. 

As grossas paredes das muralhas de Valletta

          Para entender como surgiu Valletta e porque a cidade é tão interessante, temos que voltar no tempo até o século XVI. Se a história de Malta está vinculada à Ordem dos Cavaleiros de São João, a de Valletta se confunde com a deles. Enquanto as demais cidades maltesas foram embelezadas pelos Cavaleiros, Valletta foi fundada pelo seu Grão-Mestre, e cuidadosamente planejada para abrigar e representar a Ordem, passando a ser sua vitrine para as nações europeias que lhe davam suporte.

        A Ordem dos Cavaleiros de São João teve origem em Jerusalém em 1113. Contei sua história no post sobre Rodes, a qual governou por dois séculos. Os cavaleiros se instalaram em Malta em 1530, após serem expulsos da ilha grega pelas forças otomanas. Preocupada com um possível novo ataque das forças de Suleyman, o sultão otomano conhecido como "o Magnífico", a Ordem se ocupou nos anos seguintes em construir fortificações para proteger Malta, dentre as quais o Forte St. Elmo era seu principal bastião. A preocupação era totalmente fundada; em 1565 os otomanos invadiram Malta naquilo que entrou para a História com o nome de Grande Cerco. Entrincheirados em três fortes, os Cavaleiros resistiram ao cerco com artimanhas concebidas pelo Grão-Mestre Jean Vallette, dentre as quais a mais conhecida foi atirar pelos canhões as cabeças dos turcos em cima das tropas inimigas. O Forte St. Elmo resistiu por um mês e então capitulou, mas as tropas otomanas estavam tão dizimadas - 8.000 mortes - que desistiram da invasão e se foram. Por sinal, o dia do levante do cerco, 8 de setembro, é feriado nacional maltês, sendo comemorado anualmente com uma regata no Grand Harbour.

Trecho das muralhas de Valletta com a baía e a marina ao fundo

          O Grão-Mestre Vallette, agora livre da ameaça, decidiu então construir  junto ao forte uma capital para a ilha, digna da tradição dos Cavaleiros. Daí surgiu a cidade com seu nome, com um projeto surpreendentemente avançado para o seu tempo, com ruas em formato xadrez e bem largas para a época. Para financiar a construção, foram solicitados fundos às oito nações que compunham as forças dos Cavaleiros. Ao longo dos 233 anos seguintes, a grande prosperidade do governo dos Cavaleiros, agora mais conhecidos como Cavaleiros de Malta, propiciou o surgimento de palácios e igrejas com decoração riquíssima, sob a batuta de arquitetos e pintores italianos, dos quais o mais famoso foi Caravaggio.

             Os Cavaleiros cederam Malta às tropas invasoras de Napoleão em 1798 e nunca mais tiveram um país próprio. Entretanto, a Ordem de Malta continua existindo até hoje e conta com 12.000 membros, que já incluíram a família imperial brasileira - D. Pedro I, D. Pedro II e a Imperatriz Teresa Cristina foram membros. A Ordem possui  relações diplomáticas com vários países, tendo inclusive uma embaixada em Brasília  e até um observador nas Nações Unidas. Seu  foco são as ações humanitárias, sempre sob a liderança de um Grão-Mestre, atualmente um britânico.

O burburinho da Triq Ir-Repubblika...

             Por ser extremamente compacta, Valletta pode ser toda explorada a pé. O reduzido número de carros circulando no espaço limitado pela muralha só é mais um convite para a caminhada - há um controle rígido, com grandes estacionamentos na vizinha Floriana e transporte em vans desde lá para os malteses que trabalham em Valletta. E nada como andar a esmo, indo por uma rua e voltando pela paralela, somente para descobrir que, apesar da homogeneidade das cores das pedras das edificações, a paisagem pode variar imensamente, fazendo nossos queixos caírem de admiração. Isto sem falar nas vistas inesperadas que podem aparecer repentinamente nas esquinas, propiciadas pelas ruas descendo rumo às baías ou ao mar.

           Para quem se hospeda em outras localidades da ilha, a capital é ligada a praticamente todos os pontos por linhas de ônibus. Sliema, a cidade fronteira onde há muitos hotéis, é ainda conectada a Valletta por uma linha de barco que atravessa a baía em menos de dez minutos, mas após descer no cais de Marsamxett, os visitantes tem que galgar um trecho em ladeira para alcançar as atrações.    

... e a calmaria da Triq Sant'Ursula, sem vivalma no meio da tarde

         A movimentada rua principal, com um grande trecho reservado a pedestres, é a Triq Ir-Repubblika, separada da entrada de Valletta por uma ponte sobre o fosso que acompanha as muralhas. Aliás, pronunciar o “q” maltês é uma tarefa hercúlea para nós, pobres falantes de línguas indo-europeias – a consoante é produzida pelo fechamento da glote na garganta, som inexistente nos idiomas ocidentais. Dá menos vexame ignorá-la ao pronunciar os nomes.

        Na rua principal já se pode notar a característica marcante não só de Valletta mas também das cidades vizinhas em Malta: os prédios com pedras em bege ou ocre, oriundas do calcário que é um dos principais recursos econômicos do país. Devido à cor, as fachadas adquirem um brilho único no sol da tarde. Os edifícios apresentam balcões fechados de madeira pintados em cores como verde ou marrom, num contraste curioso com as paredes em pedra. Foi engraçado ter encontrado novamente este tipo de balcão somente alguns meses após minha visita à Plaza Mayor de Lima, onde eles também imperam. A Triq Ir-Repubblika atravessa toda Valletta, unindo o Portão da Cidade ao Fonte St. Elmo, e contém vários dos prédios mais importantes da capital. Aqui e ali aparecem praças pequenas tomadas por mesinhas dos restaurantes dos prédios no seu entorno. Excelente oportunidade para degustar o prato-chefe da culinária maltesa, o coelho, presente em várias versões, desde o guisado até um inédito ravióli de coelho. A proximidade com a Sicília faz também com que a cozinha italiana apareça com frequência.

As barracas de restaurantes ao ar livre diante da Biblioteca de Malta

       Uma das raras contribuições do domínio inglês à arquitetura da cidade são as cabines telefônicas vermelhas, que remetem a Londres. Resta saber se com a onipresença dos celulares elas vão continuar enfeitando a cidade ou se serão retiradas como aconteceu com um ícone maltês: os ônibus multicoloridos que pareciam vir direto da década de 50, substituídos por modelos "normais" em 2011. Hoje só se pode apreciar suas miniaturas, à venda nas lojas de souvenir.

Cabine telefônica na Triq Ir-Repubblika

      Continuamos nosso passeio por Valletta no próximo post, focando nas suas construções deslumbrantes, com destaque para o Palácio do Grão-Mestre e a Cocatedral de São João (e foi em Malta que me deparei com esta palavra que nunca tinha lido antes, "cocatedral").

* Este é o segundo post da série sobre Malta. Para visualizar os demais, acesse Malta, na encruzilhada da História.


 Publicado por  Marcelo Schor  em 11.09.2014 




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