Quem chega por trem já encontra de cara uma surpresa. A saída da estação em direção ao centro não dá para a rua e sim num shopping enorme, o Hoog Catharijne, o maior centro comercial coberto do país. Levei seis minutos atravessando suas galerias até efetivamente alcançar a rua, a somente um quarteirão de uma das duas maiores atrações de Utrecht, seus canais.
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O cais e seus porões ladeiam o Oude Gracht |
Assim como em muitas cidades holandesas, os canais conferem um charme adicional. Basicamente são dois canais que atravessam de norte a sul o centro, aliás bem compacto - o
Oude Gracht (Canal Velho) e o
Nieuwe Gracht (Canal Novo). Mas no caso de Utrecht, os canais tem um diferencial: os cais que acompanham seu curso. A história dos canais remonta à origem de Utrecht, fundada durante o Império Romano no ano 47. A cidade surgiu como uma fortificação no braço principal do Rio Reno, na região do seu delta. Séculos depois, após a derrocada do império, o braço foi deslocado mais para o sul, e o rio, que passou a ser conhecido como Reno Velho, foi canalizado com a construção de diques e comportas no século XII. Na Idade Média Utrecht se tornou a cidade mais importante da Holanda e, com a estabilização do nível da água, os holandeses desenvolveram um sistema interessante para receber os barcos com mercadorias que chegavam à região - construíram os cais ao longo do canal. Casas surgiram às margens, com vários becos acessando o canal para escoamento da mercadoria para o restante da cidade. Para armazenar as mercadorias surgiram embaixo das casas os chamados
porões dos cais (ou
welfkelders em holandês), que se tornaram uma espécie de marca registrada de Utrecht.
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Outra vista do Oude Gracht |
Hoje a paisagem das ruas dos canais têm dois níveis, o de baixo, com os cais e porões, e o de cima, com as casas ao nível normal da rua. Vários porões se transformaram em bares e restaurantes, como o da foto que abre o post. Passeios de barco por canais urbanos normalmente propagandeiam apresentar uma visão diferente da cidade, mas em Utrecht isto efetivamente acontece, sendo uma ótima oportunidade para se apreciar este nível inferior das ruas num detalhe maior.
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Vários dos mais de 700 porões de cais de Utrecht também fazem presença no Nieuwe Gracht |
Mas não é só devido aos porões que Utrecht se diferencia das demais cidades da Holanda. Ao contrário do que costuma acontecer, desembarquei na estação ferroviária praticamente sem saber nada sobre a cidade, contando apenas com uma cópia péssima do mapa do centro. Nesses casos o primeiro passo que tomo é ir ao Escritório de Turismo, que normalmente se localiza na praça principal, na Holanda quase sempre chamada de Markt, por antigamente sediar o mercado. Bem, o mapa não indicava onde ficava o escritório, e nem sinal da Markt - ela não existe em Utrecht. Havia a Praça da Catedral, a Domplein (o escritório realmente fica na praça) e alguns passos após sair do shopping já dava para divisar uma torre alta que deduzi pertencer à Catedral. Encaminhei-me então para lá.
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A Torre da Catedral se destaca na paisagem |
Quando cheguei na
Domplein, tive nova surpresa. A praça é até diminuta, mas separa a dita torre da Catedral. E a igreja tinha um formato esquisito, sem torre ou campanário próprio. Ao entrar na catedral, o espanto aumentou. A nave altíssima tinha um comprimento pequeno, causando uma sensação forte de desproporção. Foi então que li um painel na parede da entrada e tudo se esclareceu.
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A Catedral e a Domplein - fonte: wikicommons CC BY-SA 3.0 781846 |
Desde o século VIII, Utrech é o principal centro religioso holandês. A
Catedral de São Martinho remonta a essa época, mas o prédio foi reconstruído inúmeras vezes em estilos diferentes devido à ocorrência de incêndios. A construção atual no estilo gótico começou a ser levantada no século XIII, tendo parado três séculos depois por falta de recursos. Porém a catedral, fazendo jus à importância da cidade, já era enorme e imponente. Então em 1674 ocorreu a tragédia - um tornado derrubou a nave da Catedral. A sua torre ficou então separada do restante da igreja. A nave jamais foi reconstruída e em seu lugar surgiu o largo que hoje é conhecido como Domplein, tendo as duas partes sido remodeladas e se tornado independentes. O calçamento com colorido em destaque na praça delineia o que era a nave da catedral. Curiosamente em 2004 montaram uma estrutura provisória unindo novamente a torre à catedral, e por algum tempo os habitantes puderam novamente visualizar a igreja como era antigamente.
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O interior da Catedral |
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Mural na Catedral comparando a igreja completa, antes do tornado (à esquerda), e atualmente dividida em duas (à direita) |
A
Torre da Catedral (Domtoren) é a mais alta torre de igreja da Holanda, com 112 metros de altura, estando situada no lugar onde Utrecht foi fundada há 2.000 anos. Por ser a construção mais alta da cidade, servia também como excelente torre de vigilância. Pode-se subir ao seu topo, mas para isso tem-se que vencer 465 degraus, com a vista da cidade e dos arredores compensando o esforço.
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A antiga porta da Catedral se transformou numa passagem sob a torre, dando acesso à Domplein |
Outros dois prédios no centro chamaram minha atenção. O primeiro foi a
Academia da Universidade, colada à Catedral na Domplein. A Universidade de Utrecht, com vários campi espalhados pela cidade, é uma das mais antigas do país, tendo sido fundada em 1636. Com quase 40.000 estudantes, é a maior da Holanda e uma das mais prestigiadas na Europa, tendo sido a alma mater de doze ganhadores do Prêmio Nobel até o momento.
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Academia da Universidade de Utrecht |
A segunda edificação cuja fachada merece ser vista é a
Paushuize ("Casa do Papa"), que foi construída para o Papa Adriano VI, nascido em 1479 em Utrecht e último papa não italiano antes de João Paulo II. A casa, situada numa esquina diante do Nieuwe Gracht, tem estilo renascentista com toques góticos e hoje sedia eventos.
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Paushuize, construída para o papa holandês |
Utrecht é aquele tipo de cidade que só se conhece verdadeiramente ao se passear por suas ruas repletas de ciclistas e por seus canais. Eu, que pensava em gastar duas horas percorrendo-a, acabei ficando bem mais, de tão encantado que fiquei. E se a cidade já é bonita com céu muito encoberto, imaginem como não fica num dia ensolarado...
Postado por Marcelo Schor em 30.07.2016