Explorando Valletta - parte I
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Explorando Valletta - parte I


A Triq Zekka (ou Old Mint Street) , uma das ruas em ladeira que varam Valletta, com o Mediterrâneo ao fundo

      Como estava hospedado em Valletta, fui conhecendo a cidade aos poucos, a cada dia. É atordoante o número de lugares interessantes existentes numa área tão exígua. Muitos visitantes conhecem Valletta num bate-volta da localidade onde dormem; para mim, seria pouco tempo. A capital é chamada pelos malteses de Il-Belt, ("a cidade"), e esta denominação às vezes aparece nas placas de orientação e nos mapas. Falando em mapas, alguns apresentam o nome das ruas em maltês, outros em inglês, o que pode gerar alguma confusão. 

As atrações mencionadas neste post e sua localização em Valletta

        Quem entra em Valletta pelo Portão da Cidade, sua comunicação terrestre com o resto da ilha, tem uma impressão um pouco errada. Do lado de fora do Portão há um mercado algo tumultuado, e a área logo a seguir está sendo revitalizada – o fosso profundo que acompanha a muralha está em obras e deve se transformar em um jardim e o primeiro prédio à direita na rua principal que se inicia lá, a Triq Ir-Repubblika, é um caixote moderno em final de construção. Ali passará a se reunir o Parlamento maltês. O projeto é do renomado arquiteto Renzo Piano (o mesmo do edifício Shard, a nova coqueluche turística em Londres), mas vem sendo objeto de muita polêmica - algo tão moderno dentro das muralhas da cidade histórica??

       Desse ponto em diante, a paisagem é a habitual em Valletta, com as construções de pedra com aparência antiga, enfeitados pelos balcões fechados em madeira pintada. A Triq Ir-Repubblika, além de contar com o comércio da cidade, sedia as duas maiores atrações de Valletta, ambas imperdíveis.

A fachada da Cocatedral de São João

        A primeira, a meros quatro quarteirões do Portão da Cidade, é a Cocatedral de São João (a grafia pré-Reforma Ortográfica, co-catedral, é muito menos estranha). A designação de cocatedral  vem do fato de a igreja dividir o status com a Catedral de São Paulo, em Mdina, a cidade antiga de Malta sobre a qual falarei num dos próximos posts. O templo data de 1577, e foi projetado para se destacar no coração da nova cidade fortificada, tendo inicialmente decoração simples. No século XVII, com a crescente riqueza dos Cavaleiros de Malta, o Grão Mestre Cotoner contratou o artista italiano Mattia Preti para redecorá-la no melhor estilo barroco vigente à época. Quem olha o exterior austero da fachada, que não sofreu estas alterações, tem um choque quando entra. A riqueza das pinturas e exuberância dos entalhes são tão grandes que ofuscam os olhos, numa demostração da opulência da era dos Cavaleiros.

O suntuoso interior da Cocatedral de São João

         Ao pagar o ingresso de €6, recebi um folheto e um fone para ouvir as explicações de cada área. Segui a ordem apontada no folheto, já que até o chão merece destaque - de mármore, é constituído por tumbas de 400 Cavaleiros, contendo o brasão de armas do nobre enterrado e desenhos alusivos à morte, como o célebre esqueleto segurando a foice. O teto conta com afrescos magníficos retratando a vida de São João Batista, patrono da Ordem de Malta, e as paredes da nave principal têm desenhos dourados elaborados. Interessante é percorrer as capelas laterais. Cada uma das oito nacionalidades (ou langues, como eram chamadas) da Ordem recebeu uma capela, e aparentemente elas competiam entre si para apresentar a ala mais rica. No meu ponto de vista, ganharam a contenda as da Itália, Provença e Aragão, que contém a tumba do Grão-Mestre Cotoner, nascido em Maiorca.

O altar da catedral em ouro, prata e bronze

            Mas o tesouro maior da catedral está no seu Oratório: A Decapitação de São João Batista, feita por Caravaggio em 1608, sua maior pintura em tamanho e a única assinada. Aliás, a estadia de Caravaggio em Malta tem uma evolução curiosa: o mestre italiano se refugiou ali após ter matado um homem em Roma  e se tornou o pintor oficial da Ordem; recebeu a seguir o título de Cavaleiro e iniciou sua contribuição artística na ilha, mas um ano após sua chegada se envolveu em novos atritos, foi preso e fugiu da prisão em Valletta, indo para a Sicília; foi então finalmente expulso da Ordem de Malta, após ser chamado de "membro sujo e podre".

A bandeira com a Cruz de Malta hasteada num prédio de Valletta

               Dentro da catedral se pode divisar várias vezes a famosa Cruz de Malta (como na foto acima, do altar, no canto esquerdo). A cruz, que apresenta os quatro cantos bipartidos, é um dos símbolos da Ordem de Malta, e aparece sempre nas construções erigidas pelos Cavaleiros. Variações dela são utilizadas mundo afora, como por exemplo no emblema do clube carioca Vasco da Gama. Curiosamente a bandeira nacional maltesa apresenta uma outra cruz, a de São Jorge. Porém é comum vermos a Cruz de Malta em flâmulas e numa bandeira vermelha semelhante à suíça, dependurada tantas vezes pelas ruas das cidades que cheguei a pensar que se tratava da bandeira oficial do país. Além disso, as moedas de 1 e 2 euros que circulam em Malta apresentam a cruz na sua face.

O Corredor dos Cavaleiros no Palácio do Grão-Mestre

        A segunda construção maior de Valletta é o Palácio do Grão-Mestre, duas quadras adiante, onde viveram e trabalharam os chefes supremos dos Cavaleiros de Malta. Chefes de governo das nações que formavam os Cavaleiros costumavam ser recepcionados no Palácio e se maravilhavam com suas instalações. Atualmente somente uma parte pequena do Palácio está aberta a visitação, já que sedia os escritórios do Presidente da República e também o Parlamento. Mas após abrigar as decisões que afetam a vida dos malteses por quase meio milênio, o Palácio perderá em breve esta função, pois o Parlamento está de mudança para suas novas instalações junto ao Portão da Cidade ainda em 2014.

         O ingresso custa € 10 e dá direito a visitas aos salões do Palácio e ao seu Arsenal. O acesso ao Palácio se dá por um jardim interno que dá um ar meio espanhol ao conjunto e é dominado por uma estátua do deus greco-romano Netuno. No Palácio inaugurado em 1578 e projetado pelo mesmo arquiteto da Cocatedral, o maltês Geromalo Cassar, a atração maior é o corredor principal, ladeado por armaduras sob as pinturas que retratam os Grãos-Mestres. Já os salões luxuosos contêm afrescos detalhando a história da Ordem, especialmente a resistência no Grande Cerco de 1565, pintada no friso do Salão do Conselho Supremo desde a época da inauguração. Além disso, dez tapeçarias dependuradas da famosa marca Gobelin, tecidas em 1700, têm um vínculo inesperado com nosso país - são baseadas em desenhos feitos na expedição de Maurício de Nassau à Índia e no período que passou como governador da possessão holandesa no Nordeste brasileiro. Pena que alguns salões do Palácio tivessem a iluminação extremamente reduzida.  Como são poucos os recintos abertos ao público, ao final da visita ficou um ar de "só isso?".

O Arsenal do Palácio do Grão-Mestre

          Já o Arsenal do Palácio (The Armoury, em inglês britânico) ocupa dois espaços enormes no antigo estábulo e contém uma bela coleção de armamentos de guerra utilizados pelos Cavaleiros, remontando aos tempos em que estavam sediados em Rodes.  A ênfase porém está nas armaduras, lanças e canhões do período maltês, entre os séculos XVI e XVIII. Aqui também se sobressai a Cruz de Malta, estampada nos escudos de defesa. A visita fica ainda mais instrutiva se ouvirmos os fones distribuídos na entrada do Arsenal.

O jorro da água na Praça do Palácio, com o prédio da Guarda ao fundo

        Uma dica: entre ou saia do Palácio na hora cheia e aprecie na frente do prédio na Praça do Palácio as águas que jorram do chão, dançando ao som de música. O espetáculo dura três minutos. Em cada  canto do prédio da Guarda fronteiro ao Palácio, duas fontes barrocas chamaram minha atenção, com uma águia esculpida sobre a cabeça de um tritão. Algumas fontes estão espalhadas pela cidade e foram construídas  após a inauguração do aqueduto que abasteceu Valletta com água desde a cidade de Rabat, obra do século XVII (não custa lembrar que a escassez de água é um problema em Malta, que dispõe de poucos recursos hídricos).

      A Praça do Palácio, assim como as praças vizinhas, ganha nova vida durante o Carnaval, uma festividade bastante ativa em Valletta, com o desfile de carros alegóricos com bonecos gigantes coloridos e pessoas fantasiadas.

A fonte barroca na esquina da Praça do Palácio com a Triq It-Teatru 

         Seguindo pela Triq It-Teatru e descendo duas quadras, se chega ao Teatro Manoel, um dos mais antigos ainda em funcionamento na Europa. O nome português se deve ao Grão-Mestre Manoel Vilhena, que presenteou a cidade com  o teatro em  1731  (houve ainda um outro Grão-Mestre xará desse, também português, Manuel Fonseca. Os dois estão inscritos no rol dos maiores Grão-Mestres que serviram à Ordem). Tendo pago €5 pelo ingresso, levei azar; estavam fazendo testes de iluminação com holofotes para o espetáculo noturno, e não consegui tirar foto do teto maravilhoso que cobre a plateia. Dos balcões ricamente decorados, o mais luxuoso era reservado ao Grão-Mestre e hoje atende ao Presidente da República. Os balcões me lembraram bastante o Teatro Municipal de Niterói, que considero um dos mais bonitos teatros do Brasil.

O Teatro Manoel

         Um dos aspectos mais interessantes em Valletta é a presença de prédios projetados na época dos Cavaleiros para uma finalidade pública e onde se continua exercendo esta atividade até hoje. Exemplos são o Teatro e a Biblioteca de Malta, cuja foto aparece no último post.


         No próximo post continuamos nosso passeio por Valletta, desta vez explorando as atrações da orla, incluindo os jardins e mirantes com suas vistas fabulosas.

PS: Amanhã, 21/09, será comemorado o cinquentenário da independência de Malta, com grandes festejos em Valletta. Meus parabéns para esse país que tantas saudades me deixou.

* Este é o terceiro post da série sobre Malta. Para visualizar os demais, acesse Malta, na encruzilhada da História.


 Postado por   Marcelo Schor  em 20.09.2014 




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