As Três Cidades maltesas
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As Três Cidades maltesas


O Forte St. Angelo e a orla de Birgu

          Mencionei anteriormente que os Cavaleiros de São João chegaram a Malta em 1530 e que a capital Valletta só foi fundada após o Grande Cerco de 1565. Aí vem a pergunta: onde eles se assentaram durante essas quatro décadas? Do outro lado da baía de Grand Harbour, mais precisamente em Birgu. Esta é uma das chamadas Três Cidades de Malta - Birgu, Senglea e Bormla. As cidades são conhecidas coletivamente também como Cottonera, graças às linhas de fortificação que as cercam, obra no século XVII comandada pelo Grão-Mestre Cotoner, o mesmo que mandou redecorar a Cocatedral de São João em Valletta. Bastante conservadas até os dias de hoje, as Três Cidades são um passeio bem interessante para se fazer em Malta.

Uma das três entradas de Birgu, com passagem sob a muralha

       Além de ter sediado os Cavaleiros nos seus primeiros tempos em Malta, a região da Cottonera tem uma importância vital na história do país. Birgu já existia desde os tempos medievais e no Grande Cerco as Três Cidades sediavam os fortes de St.Angelo e St.Michael. Junto com o forte de St. Elmo na ponta da atual Valletta, essas fortificações formavam a linha defensiva dos Cavaleiros de São João contra a ofensiva otomana. Ao contrário de St. Elmo, esses dois fortes resistiram e não caíram diante dos invasores turcos, mesmo diante das batalhas ferozes que aconteceram.

        Durante a época do governo da Ordem de Malta, a área foi sede da sua frota de galeões, já que as várias reentrâncias da baía formavam um ótimo ancoradouro natural. A Inglaterra aproveitou as instalações navais  como base da sua Frota do Mediterrâneo durante todo o seu domínio desde 1800. Os ingleses foram ampliando sua base paulatinamente até 1956, quando a crise da Guerra do Suez iniciou a decadência da importância estratégica naval de Malta. A presença naval britânica na Cottonera durou até 1979, quinze anos depois da independência do país!

As atrações mencionadas neste post e sua localização em Birgu e Senglea

         Uma curiosidade sobre as Três Cidades é que cada uma tem denominação dupla, uma em maltês e a outra de origem latina. Nas placas de orientação de trânsito normalmente aparece o nome maltês.

        Das três cidades, não vi muito interesse em Bormla (também chamada de Cospicua), e por isso o restante do post vai se concentrar no meu passeio por Birgu e Senglea.

A orla e a marina de Birgu

        Minha vontade de conhecer a região da Cottonera aumentou muito após divisar  no dia anterior as Três Cidades do mirante de Upper Barrakka em Valletta numa visão inesquecível. Existem duas maneiras para chegar lá a partir da capital de Malta: por ônibus ou por barco, que sai do cais do Grand Harbour. Por estar hospedado perto do terminal, preferi a opção rodoviária (e gratuita, já que tinha o passe semanal). Tomei de manhã cedo o ônibus da linha 3 e após 28 minutos soltei na parada Riche em Bormla, junto do portão de entrada em Birgu. Saí de Valletta cedo demais, quando cheguei a névoa que sempre tomava conta do céu maltês nas primeiras horas da manhã ainda não havia se dissipado totalmente.

A Igreja de São Lourenço, padroeiro de Birgu, erigida em 1681

          O nome latino de Birgu é Vittoriosa, abreviação de "Città Vittoriosa", denominação dada pelo Grão-Mestre Vallette após o Grande Cerco. A cidade é dominada na sua extremidade junto ao Grand Harbour pelo Forte St. Angelo, numa localização privilegiada sobre um promontório. Surpreendentemente, desde 1998 a parte superior do forte está cedida pelo governo à Ordem de Malta, que desta forma fincou novamente seus pés em Malta após exatos 200 anos de exílio. O forte ostenta as bandeiras de Malta e da Ordem lado a lado (pode conferir na foto que abre o post).  Os melhores ângulos para se apreciar a beleza do forte são a partir da vizinha Senglea ou desde os jardins de Upper Barrakka em Valleta. 

Um beco típico em Birgu

         O bairro onde residiam os Cavaleiros nos anos após sua chegada é conhecido como Collachio e é cheio de becos estreitos e tortuosos. E sempre que falamos nos Cavaleiros, não podem faltar os onipresentes auberges; no Collachio também havia um auberge para cada nacionalidade. Claro que os prédios são muito menores e menos suntuosos que seus congêneres em Valletta, não se distinguindo das casas da vizinhança. Infelizmente não consegui curtir a visita ao Collacchio como gostaria, por um único motivo: vários becos estavam em obras para troca do calçamento. Com tapumes e barulho, ficou impossível me imbuir do clima histórico do lugar. Uma pena!

      Um museu diferente localizado na rua de entrada em Birgu junto ao Collachio é o Palácio do Inquisidor, que nos lembra um dos capítulos mais tristes na história europeia. Malta, como país católico, não escapou da sanha dos inquisidores, ainda mais depois que o estilo de vida nada ortodoxo dos Cavaleiros chegou ao conhecimento de Roma. No palácio funcionavam o escritório e as celas da Inquisição, que podem ser visitadas. E já que falamos em museus, quem se interessa por história naval não deve perder o Museu Marítimo, localizado na antiga Padaria Naval, junto ao cais de Birgu. O museu apresenta a história de Malta, sempre pelo contexto marítimo, através de vários artefatos, incluindo um modelo em miniatura de galeão pertencente à Ordem de São João.

A Dockyard Creek, o Forte St.Angelo à direita e Valletta ao fundo. Duas dghajsas aparecem carregando passageiros no centro da foto e uma está atracada junto ao cais bem à esquerda

      Após escarafunchar as ruelas do Collachio, fui percorrer o que foi a cereja do bolo na visita à Cottonera: o passeio a pé contornando a Dockyard Creek (a enseada estreita onde se estabeleceu a  base naval inglesa no passado e que serve de divisão entre Birgu e Senglea) até alcançar a ponta da península de Senglea. Hoje a enseada sedia uma marina. A caminhada ao seu redor apresenta vistas belíssimas: primeiro da orla de Senglea; depois, ao se contornar a sua extremidade em Bormla, dos prédios de Birgu  pelos quais havia passado há poucos minutos. As edificações de pedra, as cúpulas redondas e vermelhas das igrejas e os fortes dispostos nas duas margens da enseada conferem uma atmosfera mediterrânea que enche os olhos. A visão de Valleta e do Grand Harbour no fundo do horizonte, na boca da Dockyard Creek, só torna a paisagem ainda mais atraente.
   
       Aqui foi o único lugar onde pude ver os antigos barcos típicos de Malta, as dgħajsas (lê-se daissa - uma aparece em destaque na foto que abre o post inaugural da série), caracterizadas pela ponta com forma de cimitarra, e cujo desenho data da época dos fenícios. As dgħajsas em Senglea estavam sendo usadas como táxi aquático para atravessar a enseada estreita.

A visão mediterrânea da orla de Senglea, com as torres da sua basílica ao fundo

         .Ao contrário da maioria das opiniões que pesquisei antes na internet, achei Senglea mais charmosa   que Birgu. Também mais tranquila, é a menor cidade de Malta e deve seu nome ao Grão-Mestre Sengle, que mandou construir o Forte St.Michael, a partir do qual a cidade se desenvolveu (taí uma tendência maltesa, nomes de cidades homenagearem grão-mestres...). Senglea também é conhecida em Malta por L-Isla, uma referência ao seu isolamento original do continente; o canal que separava a ilha do continente foi depois aterrado. Além das duas denominações, a cidade ainda é conhecida por uma alcunha semelhante à que Birgu recebeu na época do Grande Cerco, Città Invicta.

As muralhas que circundam Senglea

       De aspecto mais contemporâneo que Birgu, sua via principal, a Triq Vitoria, atravessa toda a península e tem o casario muito semelhante ao das ruas de Valletta. O tema da vitória, referente ainda às batalhas no Grande Cerco, também aparece no nome da basílica da cidade, na mesma rua, consagrada como Nossa Senhora da Vitória.

A pacata Triq Vitoria em Senglea 

        Na ponta da península, ponto final da minha caminhada, ficam os jardins de Gardjola. Situados sobre o que sobrou do forte St. Michael, destruído na Segunda Guerra Mundial, os jardins contêm uma torre de sentinela muito curiosa, a gardjola propriamente dita, debruçada sobre as muralhas da fortificação. Esculpidos em relevo em cada uma das suas faces superiores aparecem símbolos ligados à atividade de vigilância: uma orelha, um olho e uma garça, ave que na heráldica representa a vigília. De Gardjola se tem uma das vistas mais completas de Valletta e do Grand Harbour, desde os jardins de Upper Barrakka até o Memorial do Sino do Cerco.

A torre de vigilância nos jardins de Gardjola, debruçada sobre o Grand Harbour.

        Muito satisfeito com o que tinha visto, embarquei no ônibus da linha 1 no seu ponto final na Triq Vitoria para retornar a Valletta e saborear uma boa refeição. Afinal, já tinha passado da hora do almoço e estava faminto, não tendo visto restaurantes em Senglea, uma cidade que parece uma vila do interior.

        No próximo post, mostrarei a cidade mais antiga de Malta, Mdina, com um passado que remonta ao apóstolo São Paulo.

* Este é o quinto post da série sobre Malta. Para visualizar os demais, acesse Malta, na encruzilhada da História.


 Postado por  Marcelo Schor  em 10.10.2014 



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