Sarajevo - quatro religiões e uma cidade
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Sarajevo - quatro religiões e uma cidade



Vista de Sarajevo, com a Torre do Relógio e a Mesquita Gazi Husrev-beg

         Sarajevo entrou para a história como uma cidade cosmopolita, onde quatro religiões - católica, cristã ortodoxa, islâmica e judaica - conviviam em harmonia, o que lhe rendeu o apelido de "Jerusalém dos Bálcãs". Durante a década de 80, a cidade atingiu seu apogeu, sendo palco das Olimpíadas de Inverno de 1984. A bonança acabou abruptamente com a guerra iniciada em 1992. Uma das cidades mais atingidas, viu sua população decair de 435.000 para os atuais 320.000 habitantes, dos quais 70% seguem o islamismo.

          Como curiosidade, Sarajevo é cidade irmã das outras capitais por que passei, Zagreb e Liubliana.

      A capital da Bósnia fica incrustada num vale rodeado pelos Alpes Dináricos e possui uma forma comprida e estreita. Entramos na cidade por uma avenida longuíssima, o Bulevar, e já começamos a ver as marcas da guerra diante de nossos olhos. Esta via foi apelidada durante anos como "Avenida dos Franco-Atiradores" - como está cercada por montanhas nos dois lados, era alvo dos atiradores sérvios que se entrincheiravam no alto do morro durante o cerco, mirando em quem se atrevesse a mover na rua. Vários prédios altos da época socialista se localizam nas margens da avenida, e a maioria ainda apresenta as marcas de balas e projéteis maculando as suas fachadas. Uma característica triste de Sarajevo que salta aos olhos é a enorme quantidade de cemitérios, tanto cristãos quanto muçulmanos, alguns gigantescos.

Um dos edifícios cravejados de bala no Bulevar

        As tropas sérvias impuseram a Sarajevo um dos cercos mais longos da história recente, entre 1992 e 1995. Durante muitos meses, a cidade ficou isolada e se viu privada de mantimentos. A salvação foi a construção de um túnel secreto com 800 m de extensão e 1,5 m de largura por baixo das pistas do aeroporto, ligando a cidade a território seguro fora do cerco e por onde passavam mantimentos e munição para a população sitiada. Parte deste túnel está aberto hoje a visitação, onde se pode apreciar toda a sua história num museu sediado na casa em cujo porão o túnel termina. Meio atordoado com as histórias que tinha ouvido nos dias anteriores, resolvi não visitá-lo; preferi passear a pé pela cidade no meu tempo livre e não me arrependi, tamanha a diversidade cultural que encontrei.

Outra fachada danificada por projéteis

        Como a união foi novamente alcançada na Bósnia após quatro anos de guerra fraticida entre as etnias croata, sérvia e muçulmana (bosníaca)? Simplesmente não foi, ou melhor, foi adotada uma solução salomônica. Com o acordo de Dayton, onde a paz foi selada em 1995, o país foi dividido em duas zonas, bastante autônomas. A primeira é a Federação Croata-bosníaca, de maioria croata e muçulmana, que inclui Mostar e Sarajevo. A segunda, a República Sérvia (!!!), corresponde à área de maioria sérvia. Cada uma destas federações tem governo, primeiro ministro, parlamento e polícia próprios. A Bósnia possui nada menos que três presidentes, um de cada etnia, que devem se entender para aprovar qualquer resolução federal. Os nossos dois guias de Mostar e Sarajevo teceram frases semelhantes para descrever o esquema: "É muito complicado para os estrangeiros entenderem". Chamam a atenção soldados (e soldadas) uniformizados de países membros da OTAN que patrulham as ruas mantendo a ordem; esta presença parece indicar a linha tênue em que a paz foi estabelecida há quase 20 anos.

As federações da Bósnia - em azul escuro, a República Sérvia; em branco, a Federação Croata-bosníaca

         O centro histórico de Sarajevo é composto por duas partes bem distintas, o bairro com arquitetura austro-húngaro, mais moderno, e o bairro muçulmano, onde a cidade nasceu no século XV sob o domínio otomano. O nome da cidade aliás provém da palavra turca para palácio, saray.  O hotel em que me hospedei, o Europa, ficava muito bem localizado, a somente uma quadra de um dos pontos mais icônicos de Sarajevo, a Ponte Latina. Meu quarto tinha um vista bem legal do bairro muçulmano, como mostra a foto de abertura do post.

A Ponte Latina e a esquina do atentado ao arquiduque

           A Ponte Latina, a mais antiga da cidade sobre o rio Miljacka,  foi palco de um acontecimento que mudou o curso da história mundial em 1914. Foi ao passar diante da ponte em um desfile em carro aberto que o herdeiro do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Franz Ferdinand, foi assassinado por um estudante sérvio. A Áustria declarou guerra à Sérvia pelo incidente e o complicado esquema de alianças políticas da época fez com que a Primeira Guerra Mundial fosse iniciada. Hoje na esquina onde o estudante estava postado à espreita existe uma mostra com fotos e textos explicando o atentado e o  julgamento subsequente dos envolvidos.

A Prefeitura de Sarajevo

        Seguindo as margens do rio, pouco mais adiante se encontra o prédio mais chamativo (e bonito) de Sarajevo, a Prefeitura. Apesar de construído em estilo mourisco com uma fachada recheada de detalhes trabalhados, a construção data de 1891, quando a Bósnia já integrava o Império Austro-Húngaro. O prédio foi transformado na Biblioteca Nacional após a Segunda Guerra Mundial, mas foi muito danificado pelos bombardeios sérvios, perdendo o seu acervo no incêndio que se sucedeu. Está em fase final de restauração e quando for reinaugurado em 2014, deve voltar a abrigar tanto a sede do município quanto a biblioteca.

Rua do bazar em Bascarsija

           É interessante notar que na Bósnia a reconstrução dos monumentos perdidos na guerra foi mais lenta do que na Croácia, um provável retrato da dificuldade de levantamento de fundos. Um exemplo dessa escassez de recursos é o principal museu da cidade, o Museu Nacional, que tem um cartaz de "fechado" na sua porta, sem previsão de reabertura. Outra diferença gritante para a Croácia é a presença de pedintes na rua, mulheres e crianças. Apesar de não ter visto nenhuma favela, nota-se que a Bósnia é um país mais pobre que a Croácia ou Eslovênia.  Registre-se que é seguro passear pelas ruas. Além do mais, em todas as lojas onde entrei se falava inglês, desde as tendas do bazar até o moderno shopping BBI, no início do Bulevar, onde almocei. 

Artigos à venda expostos nas ruas do bazar em Bascarsija

        O setor mais interessante é sem dúvida Baščaršija (lê-se bachtcharchía), o bairro antigo muçulmano. Grande parte das suas ruas é ocupada por um bazar a céu aberto, com inúmeras lojinhas vendendo lembranças, artesanatos e artigos típicos em conta devido aos baixos preços na Bósnia. Nas ruas, mulheres elegantes em trajes ocidentais se misturam a muçulmanas usando véu, numa convivência que lembra muito as ruas de Istambul. Outro ponto que chama a atenção é a predileção do pessoal pelo čevapi, o prato nacional de carne e pão árabe que nos foi servido no restaurante em Mostar. Ao passar pelas ruas do centro na hora do almoço, eu diria que pelo menos metade das mesas ao ar livre nas ruas tinham o prato!

A Fonte Sebilj

        Como local onde se originou a cidade, Baščaršija possui vários pontos de interesse. Na praça Sebilj está uma fonte em estilo mourisco, sempre rodeada por pombos. Nas cercanias da praça,  se situam dois templos de religiões diferentes a pouca distância um do outro. O primeiro, a Mesquita de Gazi Husrev-beg, é o principal templo islâmico do país erigido em 1531 pelo governador otomano da Bósnia que lhe legou o nome. A mesquita tem o interior e exterior bem bonitos. O segundo, o  Templo Antigo , atendia à significativa população judaica que habitava Sarajevo até a Segunda Guerra Mundial. Dos 22.000 judeus de então hoje só restam mil no país.


O pátio da Mesquita Gazi Husrev-beg
 
A porta de entrada da Mesquita
   
         Os templos principais das duas outras religiões se localizam na parte de arquitetura austro-húngara do centro, ainda a poucas quadras de distância do Sebilj: a Catedral do Sagrado Coração, em estilo neogótico na rua comercial de pedestres, Ferhadija, e a Igreja Ortodoxa da Sagrada Mãe, erigida em 1868 na praça principal. Nesta praça se encontra uma estátua cujo nome achei genial por representar o que é o país - o Homem Multicultural
       
Rua de pedestres do centro com restaurantes ao ar livre tendo ao fundo a Catedral
A Igreja Ortodoxa e a estátua do Homem Multicultural

         Ao sairmos de Sarajevo na manhã seguinte, atravessamos a região sérvia rumo a Zagreb, a capital da Croácia, em meio a uma paisagem rural sem atrativos, ao contrário da chegada a Sarajevo. Os únicos indícios que tínhamos adentrado a outra federação eram os cartazes rodoviários, que passaram a indicar primeiro o nome da cidade em alfabeto cirílico, e os templos e cemitérios, quase sempre ortodoxos. As mesquitas, muito comuns na Federação Croata-bosníaca, evaporaram.

         O que achei da Bósnia após três dias de passeio? Um país fascinante que transborda história e cultura  pouco conhecidas dos brasileiros; cheio de contrastes, possuindo um povo acolhedor que luta para sepultar de vez o passado e suas diferenças despontadas na guerra. Conforme um bósnio comentou ao perguntarmos sobre como encarava o futuro: "Estamos já satisfeitos em manter a paz". 

* Este é o décimo quarto post da série sobre os países da extinta Iugoslávia. Para visualizar os demais, acesse Atravessando os Bálcãs: Croácia, Eslovênia e Bósnia


 Postado por  Marcelo Schor  em 28.10.2013 



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