No museu do campo de extermínio de Auschwitz pode ler-se a seguinte frase: Aqueles que ignoram as lições da História, estão condenados a repeti-la.". Conhecer a História in loco, pisando os sítios onde ela se fez, é uma das razoes porque viajo. E o Cambodja não foi excepção.
Ainda hoje, passados mais de 30 anos sobre o fim do regime dos khmers vermelhos, é possível encontrar testemunhos físicos impressionantes que nos permitem formar uma imagem mais aproximada da realidade deste período negro da história do Cambodja e da humanidade.
Em 1975, as forças de segurança dos khmers vermelhos transformaram uma escola de um bairro residencial de Phnom Penh numa prisão, a partir daí conhecida por S-21, é que viria a tornar-se no maior centro de detenção e tortura do pais. As antigas salas de aula foram transformadas em salas de interrogatório, de tortura ou de enclausuramento. Os quadros passaram a ter escritas as regras básicas de funcionamento da prisão (primeira regra: não falar), o arame farpado cobriu as as saídas dos edifícios, e os professores foram substituídos por interrogadores sádicos (o director da prisão, por ironia, tinha sido professor de Matemática).
Para aí passaram a ser mandados homens e mulheres suspeitos de serem "inimigos da revolução" e aí eram sujeitos a tortura até confessarem o seu "crime". Após um tempo curto de prisão, eram transportados para os arredores da cidade (com o pretexto que iriam ser libertados), onde eram sumariamente executados.
Hoje, este lugar carregado de uma história negra (os locais dizem que é assombrado) é um museu aberto ao público, e visitá-lo é uma experiência imprescindível para se compreender o que se passou no Cambodja durante aqueles anos. Tal como os nazis, os khmers vermelhos eram exaustivos no seu registo das pessoas que passavam pela prisão. Todos os presos eram fotografados ao entrar e, muitas vezes, antes e depois de uma sessão de tortura. Existem também registos de fotos dos presos que sucumbiram à tortura. Alguns destes registos fotográficos estão expostos nas salas do museu. Tal como em Auschwitz, as filas de rostos, assustados ou resignados, parecem intermináveis.
No total, estima-se que o número total de vitimas da prisão S-21 tenha sido cerca de 20.000 pessoas. Quando os vietcong se aproximavam de Phnom Penh, os guardas e responsáveis de S-21 torturaram e mutilaram mais 14 pessoas, antes de fugirem. As fotos dos corpos, tal como foram encontrados pelos militares vietnamitas, estão hoje expostas em algumas das celas, juntamente com as camas de ferro e alguns dos utensílios de tortura. Apenas 7 pessoas foram encontradas vivas na prisão, conseguindo sobreviver graças às suas funções especificas de tirar fotografias ou fazer desenhos.
Todas as pessoas que saiam de S-21 eram levadas para um local a cerca de 10 km da cidade, um dos muitos "campos da morte" espalhados por todo o país. Visitamos este local, conhecido por Choeung Ek, logo a seguir a termos estado no museu. No centro, ergue-se agora uma stupa com mais de 8000 crânios (organizados por sexo e idade), resultantes de escavações feitas em 1980. Das 129 valas comuns encontradas, 43 foram deixadas intocadas. Hoje, a chuva e o movimento das terras faz com que seja muito frequente encontrar pedaços de ossos e roupas à superfície. Das poucas estruturas existentes na altura, nenhuma sobreviveu, mas existem alguns locais marcados com uma pequena placa explicativa, tal como o local onde as pessoas esperavam a sua vez de serem mortas (com pancada ou corte, para poupar balas) e, por exemplo, uma árvore contra a qual eram atirados os bebés.
É uma experiência inesquecível caminhar por cima daquela terra revolvida. Os pedaços de roupa espreitam da terra, testemunhos silenciosos ao ouvido, mas que gritam ao coração. O terreno estava lamacento, e embora eu soubesse que era das chuvas, senti que a terra queria expulsar do seu interior o sangue que a encharcou, para que seja visto, para que não seja esquecido e para que não possa ser ignorado. Depois de fazer o percurso, e ao contrário das pessoas que para aqui foram trazidas quando eu era bebé, saí pelo portão, de volta à cidade, de volta à vida. E mais uma vez soube que é por isto que viajo, e que este local e a sua história viajarão comigo a partir de agora.
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