Viagens
Mulher de 30 na França
* Questionário do ginecologista francês na primeira consulta:
- Nome? Data de Nascimento? Quantos filhos?
* Boletim semanal de informações da empresa:
- XXX é a nova diretora de vendas para o mercado Europeu. Ela tem 34 anos, é mãe de duas lindas meninas de 4 e 6 anos, diplomada pela escola Y (uma das mais reputadas e caras escolas Superiores de Comércio da França)... (o texto continua explicando sua experiência em todos os detalhes)
Aqui na França, aos 30 anos a mulher tem que ter uma carreira, ser excelente mãe de 1 ou mesmo já 3 filhos, ser bela, ter um corpo magro e esportivo, comer só produtos saudáveis, oriundos dos pequenos produtores locais (mas na sobremesa pode exagerar, ah, isso pode!), e ainda cuidar da casa sem faxineira, pois faxineira na França é para os fracos, exploradores de mão de obra simples e para as preguiçosas ou princesas.
Se tem uma outra coisa que me irrita, é quando alguém insiste que...
... a mulher tem que ter filhos, pois é a natureza, e ela foi criada por isso.
Eu acredito que a sociedade evoluiu muito desde a pré-história, passando pela Idade Média e outras épocas mais modernas. Se remontarmos no tempo, a relação que se tinha com os filhos mudou muito, assim como a maternidade. Antigamente (bem antigamente) as mulheres não se questionavam, ter filhos era "natural" e era essa a razão da vida delas. E ter filhos não significava que estabeleciam com eles a mesma relação que as mães tem hoje, de carinho, cumplicidade, afeição.
Infância como nós vemos hoje também não existia, é uma construção social moderna (assim como adolescência é um conceito social aindamais atual). Em histórias da Idade Média era muito comum a mãe perder um ou mesmo mais filhos e todo mundo via como algo natural, a mulher jovem ainda poderia ter muitos outros, mas era certo que perderia outros tantos.
Mesmo atualmente, em familias muito pobres já vi isso. Certa vez, um menino que vendia doces após o almoço de porta em porta na praia que eu frequentava não veio uma tarde. No dia seguinte, a gente disse que o esperou. Ele conta então que o irmãozinho tinha morrido e tinham ido enterrar. Falamos que sentimos muito e ele disse que não tinha problema, pois já era o terceiro e a mãe estava grávida novamente!!! Em meus trabalhos nas comunidades pobres de Porto Alegre ou arredores ainda persiste essa idéia de a mulher só existe enquanto tal enquanto pode "procriar". Nem mesmo a esterilização de cadelas de rua não eram aceitas por essas mulheres nessas comunidades pois segundo elas a razão de existir de um animal do sexo feminino é a procriação, isso independente da religião.
Também já vi muitas famílias no Brasil que encarregavam um dos filhos de ir morar com a avó ou um outro parente, algumas vezes por problemas econômicos, mas as vezes era para que esse parente não ficasse sozinho na velhice ou doença. Puxa, sempre achei muita responsabilidade sobre os ombros de uma criança, sem contar essa geralmente "quase-exclusão" do seio da família. Mas quem sou eu para julgar?
Sem contar as famílias mais abastadas de épocas também remotas, cujas mães quase nunca se ocupavam dos filhos, que eram amamentados por amas de leite e que só vinham alguns minutos por dia passar um tempo com a mãe quando estavam arrumadinhas e alimentadas!
Se isso era comum entre a nobreza e burguesia, hoje não chega a ser muito diferente com alguns ricos. Conheço um casal de brasileiros com muita grana que batalhou muito para ter filhos e após vários abortos espontâneos e traumáticos enfim conseguiram. Mas eles andam para cima e para baixo com 2 babás ao mesmo tempo, 24 horas por dia... Nunca foi a mãe ou o pai que se levantou para se ocupar do bebê, e logo apóso parto a mãe passava 4 horas por dia em atividades esportivas para retomar a forma, alem de viagens sem o bebê para o Hawai, Europa, etc. Nem eram os pais que levavam a criança no médico!!! E esse não foi o único caso do tipo que presenciei, mas eram os mais ricos.
Além disso, em muitos países da Europa, dentre eles a França, o aborto é legalizado. Muitas gestantes tomam essa decisão em casos de problemas com o desenvolvimento do bebê ou riscos de saúde, mas uma outra parcela muito mais importante faz essa escolha pelo fato da gravidez ter acontecido em um momento não propício da sua vida. Até hoje, sempre que falei com alguém daqui sobre o assunto, mulheres e homens ficam surpresos quando eu evoco se o aborto não provocou sentimentos de tristeza, culpabilidade, etc, como se eu fosse o ser mais estranho do planeta por ter pensado nisso.
Já ditadura da criança-rei é um fenômeno relativamente recente, em que as familias se organizam ao redor da criança, fazem tudo em torno dela, e inclusive se sentam para brincar com a criança!!! Na minha geração os pais não brincavam com as crianças, que brincavam simplesmente entre si ou sozinhas. Aí vem aquela história para mim ridícula de que não se deve ter apenas um filho, que o mesmo vai ser mimado e egoísta... Como se o mundo não estivesse cheio de egoístas e mimados que foram criados entre irmãos!
Agora os pais que não se sentam 4 horas por dia para brincar com os filhos são acusados pelos outros de serem péssimos pais!
Toda essa introdução para dizer que atualmente a mulher pode ter uma outra função na sociedade, para com a sociedade ou com ela mesma, que ela não está limitada a um útero que fecunda. Hoje a mulher moderna SE PERGUNTA se ela quer ter filhos. Pode ser que a resposta seja "sim", "não" ou "talvez", porque ela pode ver um outro sentido na sua vida. E eu acredito que todas elas devem ser respeitadas nas suas decisões.
E mesmo assim, muitas ainda se deixam influenciar pela sociedade, e aqui na França na minha opinião a pressão na classe média é ainda mais forte do que na classe média brasileira.
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