Os campos de gelo correspondem a áreas glaciares inter-conectadas com extensão inferior a 50000 km2. Quando estas áreas são superiores a 50 000km2 designam-se por indlandsis, termo dinamarquês que significa gelo interior. Estas áreas só existem na Gronelândia e na Antárctida. Durante a última glaciação (18 000 anos), a Patagónia estava coberta por um campo de gelo de 480 000km2 dos quais hoje restam apenas 4%. O que resta desta idade do gelo encontra-se dividida pelos Campos de Gelo Patagónicos Norte, com 4200km2, e pelos Campos de Gelo Patagónicos Sul, com 16800km2. Estes campos de gelo incorporam cerca de 350 glaciares. O grande Campo de Gelo Patagónico Sul está na sua maioria em território chileno (14200km2), sendo que apenas 2 600km2 se encontram na Argentina. O Parque Nacional Los Glaciares é Património Mundial da Humanidade e é fácil perceber porquê. Alberga 47 glaciares de grande dimensão, pertencentes ao Campo de Gelo Patagónico Sul e, outros, glaciares de vale. Para além destes, inclui ainda vários glaciares mais pequenos, alguns deles ainda não inventariados.
O parque divide-se em dois sectores: norte e sul. O sector norte inclui a cordilheira de Fitz Roy e vários glaciares de vale. Por trás desta cordilheira estendem-se os campos de gelo sul patagónicos. O único glaciar de gelo continental, no sector norte, que está relativamente acessível é o Glaciar Viedma que termina no lago homónimo. A exploração deste sector do parque foi feita a partir de El Chaltén.
No sector sul escasseiam os glaciares de vale, já que a maioria dos glaciares são glaciares continentais que se estendem desde o campo de gelo até ao lago Argentino. Aqui confluem vários glaciares que vão terminando nos diferentes braços do lago. O glaciar Perito Moreno é o mais emblemático de todos eles e, constitui por si só um atractivo turístico. No entanto, se a maioria dos turistas fica satisfeito com a visita ao Perito Moreno, eu não me sentiria nada bem se viesse ao Parque Nacional Los Glaciares e não tentasse ver o maior número de glaciares possível. Foi isso que tentei fazer. Para tal, a cidade de El Calafate foi a base escolhida para a exploração do sector sul.
Em El Calafate descobri, depois de visitar a sede do parque, que não é possível fazer trekkings de aproximação aos glaciares do sector sul e a única forma de os visitar é fazer como qualquer turista. Sendo assim, ingressei uma viagem de barco designada “todos los glaciares” e que prometia um dia em cheio permitindo visualizar os glaciares: Upsala, Oneli, Agassiz, Seco, Spegazzini e Perito Moreno. Nada me deixaria mais satisfeita do que uma viagem pelo lago Argentino a bordo dum barco que navegaria entre “
tempanos” (
icebergs) e me colocaria frente-a-frente com estes “monstros” da natureza.
O grande inconveniente desta visita é que teria que dividir os “meus” glaciares com cerca de 200 turistas. Ah… já para não falar do preço que “arrasou” o meu budget (435Ar). Do mal… o menos! O barco saiu do porto Punta Bandera e dirigiu-se pelo braço norte até à entrada do braço Upshala.
A quantidade de icebergs neste braço do lago Argentino já não o permite navegar em segurança. Assim, há mais de dois anos que o barco não consegue entrar neste braço e os turistas não vêem o glaciar Upsala, o glaciar Agassiz e o glaciar Oneli, ambos terminando aqui. Convinha dizer isto aos turistas! Especialmente a uma como eu que depositou tanta esperança em ver o glaciar Upsala (um ex-líbris para os amantes da glaciologia).
O Upsala é o segundo maior glaciar argentino e estende-se por mais de 50km de comprimento. O dia estava bastante encoberto e a chuva teimava em não passar. Apesar de termos parado bastante tempo junto aos icebergues era impossível ver o glaciar em que tinham origem. As nuvens não permitiam. O glaciar Upsala é um dos glaciares que mais tem retrocedido na actualidade. De 1963 a 1999, o glaciar recuou 7 km. Estima-se que na actualidade esteja a retroceder cerca de 200m por ano, fazendo dele um dos glaciares que mais recua a nível mundial. Isto fez com que deixasse de ser o maior glaciar da América Latina e perdesse o título para o glaciar Pio XI, no Chile. Tal como o Perito Moreno ou o Spegazzini, é um glaciar “calving”, o que significa que grande parte da massa de gelo que perde por ablação (perda de gelo glaciar) é devido a desprendimentos que se processam na frente do glaciar. Estas massas de gelo podem atingir dimensões gigantescas e assistir à sua queda constitui um episódio ímpar. Os blocos de gelo desprendidos boiam no lago Argentino até ao seu degelo completo. Podem, no entanto, deslocar-se dias ou semanas no lago e afastarem-se a distâncias superiores a 50km da frente do glaciar.
O barco segue e passa o magnífico glaciar Seco, um glaciar de vale, com um vale impressionante em forma de U. Apesar de, para a maioria dos turistas este ser um “glaciarzinho”, a verdade é que para um geógrafo ele é a “personificação” de tudo o que se estuda na morfologia glaciar. O vale glaciar é perfeito, a moreia frontal é perfeitamente visível e a alimentação do glaciar pelos detritos das vertentes é evidente.
Quando o barco avança para o glaciar Spegazinni sinto-me avassalada por tamanha maravilha da natureza.
O Spegazinni é um glaciar continental mas apresenta a particularidade de permitir ver os glaciares que confluem com o seu tronco principal. Um desses glaciares é o glaciar Peineta cuja cor azul intensa é impressionante. Parece um corrente de água gelada caindo sobre o Spegazinni. Os turistas amontoam-se para tirar fotografias e eu também. Ouvem-se “Uah” de todos os lados.
A parede da frente do glaciar é a mais alta dos glaciares argentinos, atingindo 135m de altura, mais do dobro da parede frontal do Perito Moreno.
Daqui seguimos para o glaciar Perito Moreno. Para tal havia que entrar no braço norte do lago Argentino, navegação que demoraria cerca de uma hora. O dia não permitia grandes vistas mas o glaciar impressiona. A sua cor púrpura brilha entre o céu cinzento e a água esverdeada. Os flashes das câmaras fotográficas não param. Esta vista do Perito Moreno é impressionante mas muito inferior há que se tem dos passadiços. Sendo assim, resolvemos voltar no dia seguinte para explorar só este glaciar.
O barco regressou ao porto atravessando o braço norte do lago Argentino. A cor esverdeada da água acompanha-nos por toda a sua extensão. Deve-se ao chamado “pó glaciar”, partículas muito finas que o glaciar produz durante a abrasão que processa no contacto do gelo com a base rochosa. Esta "farinha glaciar” mistura-se com a água e segue em suspensão produzindo esta tonalidade na água que é tão característica dos ambientes glaciares.
O dia terminou. Sinto-me satisfeita apesar de muito ter ficado por ver. Como seria ver o Upsala e os glaciares que convergem para o lago Oneli! Infelizmente, para já, não me era possível. Quem sabe um dia a natureza permite chegar ao glaciar! Quem sabe, um dia, as autoridades do parque permitem fazer treks neste sector! Enquanto isso contento-me com um postal magnifico de uma vista aérea e sonho. Sonho ser uma formiga que caminha sobre este grande legado que restou da Idade do Gelo.